Tempos de intolerância, discriminação e horror

por Sulamita Esteliam

Desde a semana passada quero postar algo sobre crime brutal de que foi vítima o garoto Kaíke Augusto Batista dos Santos, em São Paulo, logo ao final da primeira semana concreta do ano. Tempos de intolerância, discriminação e horror que parecem não ter fim – mais aqui neste blogue.

Pensava, na verdade, em reproduzir texto do colega Leonardo Sakamoto, que além de jornalista e blogueiro é cientista político, sempre brilhante – aqui, e que me chegou via Rede Mulher e Mídia.

Outras histórias me pegaram pelo caminho. São tantas histórias…

Entretanto, em minha habitual navegada pela rede, esta manhã, topei com o texto do escritor pernambucano Marcelino Freire, de quem já falei aqui, reproduzido no Blog do Rovai. Está publicado também no blogue do autor. Dispensa adereços, é de arrepiar.

Transcrevo:

Tempo de Caça*

kaumf-2Pense, leitora, amigo leitor. Na alegria de um menino de 16 anos. No colorido que há no olhar. Olhe. Lembre-se de quando você era assim. Serelepe. Cheio e cheia de vigor. Quando acreditava no mundo. Ia fundo aonde fosse. Perceba de lado. No seu vizinho, no seu irmão. Nos moleques no shopping. No rolezinho pelas praças. Nas várzeas. Cada um, a seu modo. Inocente. Chutando o país para frente. Ao sol, ao gol.

Pense, hoje. Na idade que o seu filho adolescente porventura tenha. Nas espinhas da revolução. Em cada recente manifestação. Que tomou conta do Brasil. Nas caras pintadas. No sol raiando. Triunfante. Nos arco-íris de gente. Pequena. Miúda. Colegial. Garotos e garotas que fizeram todo mundo cair na real. Pense.

Agora pense em Kaique Augusto Batista dos Santos.

Seu corpo morto foi encontrado embaixo de um viaduto de São Paulo. Na madrugada de sábado passado. Ele tinha apenas 16 anos. Pense no que é encontrar seu filho. Largado, desfigurado. Os dentes quebrados. Sem sorriso. Pense na falta que a alegria nos faz. Que essa alegria nos fará. Reflita sobre isto.

Ponha-se, mesmo que você seja mais velho, ou velha, ocupe agora o lugar desta matéria. Morta. Até quando o nosso coração suportará abrir o jornal? Olhar pela janela e encontrar? Este futuro? É prematuro dizer que foi assassinato. A polícia avisa que ainda está apurando o caso. Grupos se organizaram para protestar. Contra a homofobia. Está reaberta a temporada de caça aos pretos, aos jovens da periferia, a todos os veados no ano que mal se inicia. Na última vez em que foi visto, Kaique estava saindo de uma festa gay.

Divirta-se. Puxe pela lembrança, agora, amigo leitor, leitora. Traga de volta, à tona, as suas primeiras aventuras amorosas. Recorda-se? O segredo do amor, as chaves. Aquele rebuliço nos hormônios do peito. O desejo. As descobertas dos sentidos. Averigue, no presente, no passado. O quanto é divertido viver. Promissor crescer. As viagens que você pensava em fazer. Os filhos que você poria no mundo. O dinheiro do próprio suor. Seu primeiro emprego. Pense. Quantos livros, quantos filmes. Quantos carnavais esperados. Planejados. Nos pioneiros porres de vodka, pense. No tempo do iê-iê-iê, do rock, do funk. Nos brilhos da noite. No amanhecer. Você e a sua turma, juntos, vendo o sol nascer. Pense, não pare de pensar. Não pare. A vida é esse movimento. É feita desta asa que nos move. Foi o céu mais lindo o céu daquele nosso tempo. Lembre-se. Da paisagem que você deixou perdida. Na memória.

Pare, agora, por favor. E pense de novo em Kaique Augusto Batista dos Santos.

Morto, com marcas profundas pelo corpo. Franzino. Completamente diferente da imagem saudável de menino. E tão rica de destino. Eu, de minha parte, desde que soube da morte dele, é só o que eu tenho feito: pensado nele. Toda vez em que morre um gay é esse silêncio. De pesar e sofrimento. O que me acontece. Esse tédio. Esse medo. Essa angústia. Esse desmantelo. Eu grito por justiça quando penso. Quando escrevo. Chamo à responsabilidade as autoridades. Urgentemente. Volto a me encher de garras. Minha juventude sempre renasce em meus textos.

Kaique, querido, meu filho, meu amor, meu amigo, companheiro. Nunca nos vimos. Nem sei quem você foi. Mas eu te conheço, íntimo. À margem. Brasileiro igual a mim. Eu já tive a sua idade. No Recife que até hoje me invade. Vivi minha adolescência por lá. Pelas pontes da minha cidade. Passeei. Numa época, ave, em que não havia cabeças raspadas, desreguladas, gente que hoje marca, via Facebook, encontros para nos matar. Hoje mesmo, neste domingo, parece que haverá skinheads no Parque do Ibirapuera. Organizados em grupos, prontos para trucidar o primeiro que passar. Veados como eu. Nordestinos como eu. Pense. Não deixe de pensar. É duro imaginar. Tamanha covardia. Repito. Pense. Reflita, por um instante, é o que peço.

Largue, leitor, leitora, este jornal no sofá, no colo, e olhe aéreo, e olhe, aérea, para fora de sua janela. A nossa pátria lá fora merece o nosso amor. Kaique era todo amor. Eu tenho a certeza. Nos dias em que viveu ele sabia. Que a vida pulsava. Mesmo que tudo seja contra a gente. A vida é a favor. Sempre a favor. Quantos anos você tem hoje? Já pensou? Voltemos.

Não faz tanto tempo que chegamos ao mundo. E ele já girava. E ele nunca para. É preciso valer a pena cada minuto de nossa permanência por aqui. Pense. Quando adolescente, a febre que nos dá. O olho para o horizonte. Aonde nos levou aquela ponte de esperança no olhar? Eu não perco a esperança. Kaique, saiba. Eu não tenho o direito de perder a esperança. Não temos o direito de perder a esperança. Apesar de tudo, é ela que nos dá fôlego para viver. Vindo de longe, desde os primeiros anos de nossas vidas, será esse tipo de amor que nos guiará. Essa a luz que nos acompanhará. Sem nunca se apagar. Até morrer.

*[ Texto meu publicado no jornal
O Estado de S. Paulo de hoje,
domingo. Espalhe. Essa minha.
E nossa indignação ]

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